quinta-feira, 12 de maio de 2016

SE ESSA RUA FOSSE MINHA...

“Sempre tive um caso de amor com as ruas...”
Crônica de um louco amor, Charles Bukowski

Imagine um mundo sem ruas, onde todos vivam em condomínios isolados?

Minha filha me fala de um apartamento sensacional que a amiga comprou no recreio. Tem sauna, piscina, playground, sala de yoga, hamburgueria, correios, etc etc etc.

Logo pra mim, essa menininha de rua que vos fala criada em casa de vila. A rua era o nosso playground particular e as calçadas, onde as crianças corriam livremente sem problemas brincando no dia a dia e nas vilas próximas às casas da rua (as vilas eram os cantos  e becos magníficos e amados).

(Mas no meu bairro estão acabando com todas as vilas antigas pra construir prédios hediondos , iguais entre si. Niterói é a falange dos construtores  sem escrúpulos e dos ricos de mau gosto e sem tradição, sem dó , sem piedade, sem senso de história: para isso eles vão a Europa uma vez por ano bater fotos e se dão por satisfeitos enquanto enfeiam a própria cidade...

 Se deixarmos transformarão isso aqui numa Barra da Tijuca com direito à “Estátua da Liberdade” e pior: colocarão suas horrendas mansões impedindo o acesso às praias, como aliás,  já aconteceu em Camboinhas , sem que muita gente percebesse e o prefeito “felizinho” da época,  permitiu .

Mas, ainda não acabaram  as previsões horríveis: aquele início horroroso de Itacoatiara parecendo Miami, já é prenúncio de algo muito ruim. O fim estará próximo quando surgirem  quiosques vendendo taças de prosecco(como em Búzios) e louras platinadas da coluna social do início ao fim,os doidões do pampo sumirão e Itacoa virará a Babilônia que essas pessoas  almejam: ridícula, frívola, espetaculosa.  Como Itacoa é uma praia amada por meio mundo, espero que esse meio mundo impeça que isso aconteça...

Onde o homem chega , tudo se estraga.. Isso é um fato!)

Feita essa digressão infeliz, digo que foi num fundo de vila que criei um palco improvisado na garagem de meu pai(com direito  à cortina de abrir e fechar) pra fazer o conto de Natal de Charles Dickens (versão Disney) encenada pelos meus amigos de oito anos e dirigida por mim(de 11 anos, um “prodígio”! rs), cuja plateia  foi formada por nossos pais, que se impressionaram vivamente(uns bobos!) com nossa criatividade infantil tão natural quão tão pouco explorada por eles...uma pena!

(Eram tempos duros. Nos colégios cantávamos o hino da bandeira, decorávamos tabuada e verbos irregulares em inglês e português , enquanto os adultos não tinham a mínima ideia do que se passava nas nossas cabeças..)

Seja como for, na rua é que conhecíamos as loucas (no meu caso, a vizinha da frente); o padeiro bem humorado da esquina; o borracheiro  sempre sujo que nunca nos dava um sorriso; os árabes da casa rica da esquina e suas festas barulhentas; o filho brigão da casa de fundos; o que vivia pelado na casa da frente ; o babão que quando falava cuspia  muito em todos e fazia as crianças pequenas rirem...

A rua e suas impressões:  ela enriquecia aqueles que a vivenciavam.

É na rua que você tem a experiência das diferenças. Só quando se está na rua  é que você observa o outro. Mas se você mora num condomínio fechado pra rua e ali tem tudo o que precisa, você deixa de viver essa coisa essencial: o contato com os outros, de outras classes, com outras ideias, com outras posturas, outras dimensões de vida...é um mundo na bolha, literalmente!Você vai morar entre iguais (com  o mesmo nível social, as mesmas ideias, as mesmas escolas, o mesmo trânsito, o mesmo restaurante, blá, blá,blá.)

A rua é o lugar do imprevisto. E  mesmo hoje, em que a minha infância já vai longe(e eu nem percebi...rs), ela ainda é o lugar onde você encontra todo tipo de gente e de experiência; onde explode uma bomba, onde uma árvore tomba atravessada; onde  alguém é atropelado ; pombos são alimentados por idosos; uma louca de cabelo azul passa gritando que vai matar alguém; o sapateiro é assaltado; o relojoeiro muda-se;uma procissão surge inesperada da igreja em frente; alguém grita vendendo sucata:  “geladeira velha, máquina velha”;e, num dia um poste cai e, de repente, todos aqueles moradores que jamais se falaram estarão todos lá de pijama à meia noite, convivendo e se reconhecendo  de outros momentos partilhados na mesma padaria, no mesmo supermercado,  no mesmo ponto de ônibus, no mesmo boteco belo, velho, sujo e português onde comeram um bolinho de bacalhau num dia em que choveu demais...


A rua, essa coisa tão antiga, da qual eu já tenho saudades.

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