Atrasada de novo e uma van me “resgata”. Tento pagar no início, o que é
o certo e está escrito na porta de todas as vans cadastradas, mas a cobradora não
recebe. Diz que “só depois”. Logo que entro sou quase arremessada para a porta
numa arrancada fenomenal do motorista. Seguro firmemente o apoio de banco que
já está meio capenga de tanta mão que passou por ali tentando se segurar dos solavancos
e a cobradora, confirmando a impressão que tive sobre ela, de uma carioquice
macunaímica, me diz:
- Isso mesmo, moça, segura mesmo, que o piloto é louco- e ri feliz, como se isso fosse uma grande vantagem da sua
van.
E ainda completa:
- Guarda bem a cara dele, cabeça branca, moreno.
Deve ser o marketing dela para: “volte sempre” ...
No Rio é assim: motorista é “piloto”, e, convenhamos, a julgar como “voam”,
é justa a denominação.
A van segue a toda. A viagem é completada pelas histórias da cobradora,
que resolveu repassar toda a sua vida aos estranhos. Teoricamente, é para o
piloto que ela o faz, mas, do jeito que fala alto e espalhafatosamente, é
impossível prestar atenção em outra coisa.
Conta suas peripécias na escola adventista de Caxias onde: “as menina usava (a concordância verbal
era essa) a saia dobrada, merrrmo”, mas ela “não podia”, então ela se vingou “tacando
cabeça de nego no banheiro” e explodiu o vaso e tudo. O quanto xingou e foi
suspensa, quando encheram de tachinhas a sua cadeira, etc, etc. Ela contava tudo isto rindo, orgulhosa de si
mesma.
Passageiro vai, passageiro vem, ela solta pra um no meio de uma das suas
histórias escabrosas:
- Mas...esse cara que tava a fim
de mim no meu curso, era coroa já que nem o senhor....
A cara do tal “senhor” foi de causar compaixão. Ele, que até já estava
se engraçando por ela...ser chamado de coroa sem dó deve tê-lo brochado
completamente.
E solta pra outro, que pergunta onde fica determinado lugar:
- Sei lá onde é isso, não sei nem onde eu moro.
Quando a maioria dos passageiros já tinha descido (mas eu ainda não) ela
diz, de repente, a mulher dos grandes instintos:
- Eu estou é com vontade de brigar com alguém, tô louca pra brigar, tem
anos que eu não brigo.
Então vieram, rápidos, os relatos de violência “inocente”: Uma mulher que
tomava remédios controlados bebeu muita cerveja e cismou com ela num bar “assim
do nada”, então ela pegou “um litrão” (o que seria isso? fiquei pensando). Mas
não podia pensar muito porque ela vomitava as palavras, enfim a tal mulher
cismou com ela e partiu pra cima. Ela não deixou por menos, com o litrão ameaçador
nas mãos, no que o dono do bar recorreu:
- Não atira o litrão, não faz isso não, você vai se arrepender...
E a mulher partiu com tudo pra cima dela, rasgou a sua roupa e ela ficou
lá, com a quase nudez.
- Graças a Deus, que eu estava com um soutien direitinho de oncinha. Foi
isso mesmo Marcão, eu cheguei em casa com a blusa rasgada, com o soutien
aparecendo – ela contava pro motorista.
Depois engatou numa historia de uma inimiga que:
- Porra, ela tava tomando banho na minha casa, não tinha nem casa pra
tomar banho, porque brigou com a família, dormir eu não deixei, mas ela tomava
banho todo dia lá e me fazer isso!?!?!
O Marcão pondera:
- Ela é legalzinha.
- Legalzinha???? Legalzinha é o c...ela foi tentar fazer fofoca com o
meu homem. Ah, não prestou...eu fiquei louca. Tentei pegar uma faca, me
tiraram; tentei uma lâmina, não deixaram, arrumei um pedaço de pau. Batia na
minha cintura o pau, cheinho de farpa.Fiquei na esquina esperando.
(E, nessa altura do relato, ela fez suspense. Cheguei a imaginar a
música da pantera-cor-de –rosa...)
- Ela voltou, eu passei o pau na
calçada e perguntei: Vem cá tu foi falar isso, isso e isso pro Flávio?
(Notem o pronome "isso"...)
- Eu não...
- Foi a Patrícia que falou que tu queria falar pra ele que eu fiz isso,
isso e isso.
- Eu não.
Eu passei o pau de novo na calçada.
- Eu vou repetir eu acho que tu não entendeu....é verdade que tu falou “isso”
pro Flávio?
(E o pau comeu, como vocês podem imaginar.)
Ela ainda disse:
- Eu me atraquei com ela queria marcar a cara dela. Vagabunda tem é que
ficar com a cara marcada!!!
O Marcão a essas alturas já parecia assustado e eu, no meu eterno
delírio literário pensei em Nathaniel Hawthorne( A Letra Escarlate), livro que
me impressionou muitíssimo...”vagabundas tem que ser marcadas, vagabundas tem
que ser marcadas”, a frase martelando na minha cabeça...
Ela continuou, enquanto eu delirava com o relato:
- Mas ela deu sorte a filha da puta, passou um motoboy. Ela pediu socorro
e sumiu. Dia desses, ela tava no mercado com uma lata de leite e um neston,
quando ela me viu, largou o leite e o neston pra lá e saiu correndo...
E riu.
Depois começou a contar de quando bateu numa mulher com um "vestido longo
vermelho" que deu em cima do “homem” dela, mas era o meu ponto e não pude mais
ouvir historias tão românticas e angelicais...
Desci.
Eu que escrevo pacientemente ficção, às vezes fico pensando: quem
precisa de personagens numa cidade como essa?