“Eu vou dar um levante na minha vida”, o
cobrador da vã fala isto com o habitual carioquês. O déjà vu vai ficando um
pouco blasé, o ar da manhã um pouco nublado vai mudando para um céu aberto e
pesado. De algum modo, “o dia vai pesar”, penso, adivinhando embora, lembre
lentamente D. falando que ele escrevia como se fosse uma sinfonia , que vai
crescendo até atingir o ponto alto...então , decido que vou ter um dia em que
a sinfonia se conclua com o meu corpo pesado dentro de travesseiros macios,
depois de ter composto uma música qualquer. Que música posso compor? Penso
isso, enquanto alucino por um momento, com a maciez de meu travesseiro e meu
corpo moído e mal descansado, vai se acomodando no espaço apertado da van, até
encostar no vidro embaçado onde se aninha por um momento doce e breve, “dormir,
talvez sonhar”,ah meu bardo, mas a perna do passageiro ao lado encosta em mim e
quebra o suave momento alucinatório, a réstia de sono acumulada que se desfaz
em pó e volto a escutar os gritos do garoto: “nova campina, santa cruz, caxias
shopping...”. Aspiro um ar denso, minha alergia, que é meu filtro protetor da
impureza do mundo, já está no limite, são sete da manhã, mas já estou totalmente
sem voz e sem ar. Tusso pra tentar voltar ao normal, tento engolir saliva, mas,
pra mim, o mundo é uma procissão dissonante de barulhos e poeiras e cinza e
sombras.
Chove a cântaros e os carros em alta velocidade,
espirram água nos passantes que se acumulam nos pontos com cara de sono. Um
tilintar da chuva faz soar em meus ouvidos algo semelhante a uma canção de
infância, tento cantar quase em silêncio, mas minha voz destruída por anos de
maus-tratos não sai em tons baixos, e penso que terei, brevemente que
reaprender a falar, talvez tenha também que aprender a respirar, eu, a eterna
boba, minha avó diria se fosse viva, mesmo tendo sido ela mesma uma professora,
que ensinar aos outros é como “dar pérolas aos porcos”, pérolas aos porcos, é a
metáfora de minha vida, ou foi por um
tempo.. Pérolas, sempre fui fascinada por elas. No meio do caos, do nojo, do
mais banal das coisas, descubro que tudo o que me interessa é o raro, o
distante, o perfeito, o que nunca se encontra...A PERFEIÇÃO!
A perfeição não é um cartão postal. Metáfora do
Rio. Um passeio a pé pela cidade mais imunda do planeta e você percebe a um só
tempo o que é a mentira partilhada, a falta de sensatez dos seres humanos e a
capacidade que todo mundo tem de seguir vivendo uma vida medíocre. E acreditar volta e meia que é uma soberba
vida, uma vida maravilhosa. Subindo uma ponte imunda de ferro, carcomida, com
poças de água acumulada; um sujeito no meio dela tentando assaltar; vários
mendigos descalços pedindo esmola, e outro dormindo embaixo de papelões, lembro
o cartão postal “braços abertos sobre a
Guanabara”, oh linda cidade jobiniana não chores, evangélicos ainda poderão
cantar um canto Gospell em tua homenagem, isso te restou, talvez um apoteótico
funk, regido por um maestro pós-moderno, depois te dirão que és perfeita, és
maravilhosa e acreditarás, acreditarão.
Amanhã tudo recomeça, outras epopeias....