sábado, 28 de setembro de 2013

Déjà vu


“Eu vou dar um levante na minha vida”, o cobrador da vã fala isto com o habitual carioquês. O déjà vu vai ficando um pouco blasé, o ar da manhã um pouco nublado vai mudando para um céu aberto e pesado. De algum modo, “o dia vai pesar”, penso, adivinhando embora, lembre lentamente D. falando que ele escrevia como se fosse uma sinfonia , que vai crescendo até atingir o ponto alto...então , decido que vou ter um dia em que a sinfonia se conclua com o meu corpo pesado dentro de travesseiros macios, depois de ter composto uma música qualquer. Que música posso compor? Penso isso, enquanto alucino por um momento, com a maciez de meu travesseiro e meu corpo moído e mal descansado, vai se acomodando no espaço apertado da van, até encostar no vidro embaçado onde se aninha por um momento doce e breve, “dormir, talvez sonhar”,ah meu bardo, mas a perna do passageiro ao lado encosta em mim e quebra o suave momento alucinatório, a réstia de sono acumulada que se desfaz em pó e volto a escutar os gritos do garoto: “nova campina, santa cruz, caxias shopping...”. Aspiro um ar denso, minha alergia, que é meu filtro protetor da impureza do mundo, já está no limite, são sete da manhã, mas já estou totalmente sem voz e sem ar. Tusso pra tentar voltar ao normal, tento engolir saliva, mas, pra mim, o mundo é uma procissão dissonante de barulhos e poeiras e cinza e sombras.
Chove a cântaros e os carros em alta velocidade, espirram água nos passantes que se acumulam nos pontos com cara de sono. Um tilintar da chuva faz soar em meus ouvidos algo semelhante a uma canção de infância, tento cantar quase em silêncio, mas minha voz destruída por anos de maus-tratos não sai em tons baixos, e penso que terei, brevemente que reaprender a falar, talvez tenha também que aprender a respirar, eu, a eterna boba, minha avó diria se fosse viva, mesmo tendo sido ela mesma uma professora, que ensinar aos outros é como “dar pérolas aos porcos”, pérolas aos porcos, é a metáfora de minha vida, ou foi  por um tempo.. Pérolas, sempre fui fascinada por elas. No meio do caos, do nojo, do mais banal das coisas, descubro que tudo o que me interessa é o raro, o distante, o perfeito, o que nunca se encontra...A PERFEIÇÃO!
A perfeição não é um cartão postal. Metáfora do Rio. Um passeio a pé pela cidade mais imunda do planeta e você percebe a um só tempo o que é a mentira partilhada, a falta de sensatez dos seres humanos e a capacidade que todo mundo tem de seguir vivendo uma vida medíocre.  E acreditar volta e meia que é uma soberba vida, uma vida maravilhosa. Subindo uma ponte imunda de ferro, carcomida, com poças de água acumulada; um sujeito no meio dela tentando assaltar; vários mendigos descalços pedindo esmola, e outro dormindo embaixo de papelões, lembro o cartão postal “braços abertos sobre a Guanabara”, oh linda cidade jobiniana não chores, evangélicos ainda poderão cantar um canto Gospell em tua homenagem, isso te restou, talvez um apoteótico funk, regido por um maestro pós-moderno, depois te dirão que és perfeita, és maravilhosa e acreditarás, acreditarão.
Amanhã tudo recomeça, outras epopeias....



domingo, 15 de setembro de 2013

I love my car

O amor aos carros ,a que por um defeito genético qualquer me falta, é tão grande que alguns desses semideuses são vistos como fins em si mesmos, e não meios. São amados como bens maiores, como os cachorros, as músicas preferidas e os celulares. Donos de carros grandes e potentes são particularmente vulneráveis a essa paixão. Uma espécie de confirmação do poder da pessoa.  É quase certo, do ponto de vista de quem anda a pé pela cidade, que há muito mais probabilidade de buzinadas no seu ouvido de um dono desses gigantes motorizados do que de um fusquinha ferrado. Há uma relação direta entre autoconfiança & o tamanho do carro.

Dia desses tomei uma buzinada de um desses. Era gigante, preto e brilhoso, o pitbull dos carros. Seu dono, impaciente, e deveras amparado pelo seu poder psicológico de máquina mortífera, me viu brevemente colocando os pés na esquina e resolveu, antes que eu avançasse um passinho, testar o meu tímpano maltratado. O que ele não viu era que o sinal acabava de fechar pra ele, que se viu obrigado não só a me ver atravessar a rua, como ainda conheceu o meu sorrisinho sonso que costumo dar a babacas como ele, acrescido, tal era a raiva que eu senti da buzina histérica direcionada constrangedoramente a mim, de um sinalzinho bem conhecido dos dedos que quer dizer exatamente: “vai tomar no seu ...”. Belo contraste com meu vestidinho branco de professora cheia de gentilezas. Ah, quando eu perco a minha doçura!!! A cara dele não vi, que o vidro, claro, era blindado, mas  coitado, ele nem pôde me atropelar...   

terça-feira, 10 de setembro de 2013

VANS

Terça, mais um dia de oficioso atraso. Eu tenho pressa, pressa, eu coelho de Alice, correndo com o relógio nas mãos, alerta e estressada. Tomo uma van, duvidosa, como todas.
Acontece de tudo em vans do mais corriqueiro, como extrapolar limite de pessoas, mesmo com os passageiros reclamando; funcionar sem ar-condicionado, mesmo indicando que tem e pagando o preço por ele, sem ser avisado previamente; também trocam cartões magnéticos, se você bobear;  te fazem pagar duas vezes uma passagem; escutam um som astronômico de baixo nível no seu ouvido a viagem toda  e por aí vai.  Verdadeiras ciladas, elas são como o cartão postal do Rio ao avesso; “vejam turistas, tudo o que temos de podre, a nossa esperteza macunaímica da pior qualidade”...
Sento no banco perto da porta, qualquer coisa, é melhor tentar cair fora de um veículo em movimento do que sofrer na mão de um assassino, vai saber.
Perigosas e estressantes, alguns de seus condutores e cobradores são bandidinhos despudorados e conversam sobre tráfico de modo descarado na cara do passageiro, por um código deficiente e palerma que eles devem achar que funciona, pois são estúpidos o suficiente pra não perceberem que seu vocabulário de meia dúzia de palavras não engana ninguém, ou consideram que os passageiros têm mais em que pensar e não prestam atenção neles, se sentem impunes. Esse, particularmente para subitamente no meio da Avenida Brasil, quicando doidamente, quando um maluco se interpõe entre o vidro do motorista e o asfalto claramente perigoso pedindo carona com cara evidente de marginal que varou a noite no “batente” e os passageiros honestamente trabalhadores ficam com as antenas ligadas: “Pô , malandro, dá uma aliviada aí”...”vai por onde? “ “ah, não dá pra mim, valeu”. Escapamos de uma , quando o motorista, solta pro cobrador: “pô, carona eles querem, mas pra conseguir um pra vender uma pedra pra mim, é difícil.”. Não se ouve um pio dos passageiros, que se fingem de mortos.
O descaramento é uma doença nacional e particularmente muito eficiente nesta cidade.
E, policiais nunca andam de vans... 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

DESPACHANTES

Chego ao ponto pra tomar um ônibus, o despachante que já me conhece pelas sucessivas vezes em que me viu ali, me avista da esquina e sabe muito bem que é o meu ônibus, mas me ignora, e bate na traseira do ônibus, o que é a deixa pra ele partir.  Depois finge que só agora me viu e diz pra eu correr pra pegá-lo na outra curva, mas não tenho joelhos pra isso, com os saltos. É a segunda ou terceira vez que esse despachante me manda correr atrás do ônibus e o despacha fingindo não ter me visto na esquina. Talvez se divirta com mulheres correndo de salto alto atrás de um ônibus.
Fico no ponto.
O idiota do despachante começa a falar ao celular, ri alto, enquanto uns três ônibus estacionam ao mesmo tempo e passageiros se aglomeram no ponto, com olhares angustiados no relógio, mas ele não vê porque está de costas pra rua. Parece que faz de propósito, embora seu trabalho dependa de ele estar atento à rua, ele não o faz...é impressionante isso! Os motoristas descem, vão até a barraquinha de café, riem alto, se confraternizam, contam piadas, batem uns nos outros em esfuziantes demonstrações de carinho mútuo, leem jornais de Cr$0,50, falam do jogo, disso e daquilo, pagam cafés uns pros outros, enquanto os passageiros continuam contando os minutos.
Resolvo explodir, indago a um motorista quando o ônibus sairá, ele diz que depende do despachante, vou ao despachante, ele diz quase aos berros, que me “andou correr atrás de um”, que eu perdi “por culpa minha”. Oooops, é um baixinho arrogante, tão baixinho que com os meus 1,62 eu pareço um mulherão na frente dele, ele estufa o peito e soletra: ”Vai sair na h-o-r-a que tiver que sair”, tenho vontade de socá-lo “ah, seu eu fosse homem”, penso, pra lá de puta da vida.  Preparo o punho, mas resolvo gritar no mesmo tom que ele, o chamo de “arrogante”, tremo toda, meu sangue ferve fácil, veia portuguesa, digo que ele é incompetente, que se diverte vendo passageiros “ferrados”, que não faz seu trabalho direito, que  vou denunciá-lo à empresa, ele grita “pode fazer isso”, sacode o crachá pra eu descobrir seu nome, que eu nem olho na fúria em que me encontro. Grita pro motorista: “leva essa cidadã daqui, leva logo, carrega ela”. E despacha, só assim, finalmente, um dos ônibus. O medo dele é evidente agora, mas continua gritando pra afastar o medo: “leva ela, leva ela”, como se estivesse prestes a me bater e, gritando assim, evitasse isso. Foda- se ele.  Nem presto atenção, viro as costas e entro no ônibus onde grito alto, por pura catarse nervosa: “escroto, escroto, escroto”, sem pudor algum. Minha feminilidade contrasta com minhas palavras nessa hora e alguns passageiros me olham com espanto , mas um deles se solidariza , diz que ele é um idiota mesmo, pra eu denunciá-lo, diz que quase já bateu nele também, que ele só vive de putaria e arrogância etc etc.
Seguimos e o motorista ao final do percurso, solidário com a imbecilidade de seu colega, quando eu peço que pare na escola, me pergunta irônico: “aqui mesmo ou quer que eu deixe na porta? ” Eu respondo,mais irônica ainda, com o meu melhor sorriso, olhando-o bem nos olhos: “onde ficar melhor e mais confortável pro SENHOR”.

Por rancor injusto a mim, ele me deixa bem distante da escola. Agradeço com um sorriso doce e claramente cínico, sou perita nessas artes, e saio calma, nem penso mais em atraso, penso em como o ódio a esta cidade e a todos os imbecis que vivem dentro dela é a única coisa que me faz sobreviver a ela.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

PÃO DE QUEIJO CARIOCA

É mais uma manhã de gado, mas vejo se há tempo para um pão de queijo embora não se possa chamar de pão de queijo, uma maçaroca feita com polvilho, trigo e sabe-se lá mais o quê que tenha gosto de queijo. A garçonete não me olha, se concentra numa nota que alguém lhe entregou , faz caretas tão sobre-humanas, que não distingo se são de mau humor ou de sofrimento. Seus olhos estão vermelhos, talvez não tenha dormido bem, como eu, “socorro, preciso de um café”, penso, tentando fazer com que ela escute meu pensamento. Ela diz, de repente, que não vai me atender se eu não pedir no lugar certo, e me aponta uma fila que é, na verdade, inexistente e bagunçada e em que o critério para ser atendido parece ser, “simpatizo com este aqui”. Definitivamente ela não vai com a minha cara, pois atende a outros que chegaram depois de mim e me deixa esperando. Quando finalmente não resta ninguém pra atender, ela se vira pra mim, pega o meu dinheiro primeiro, olha a nota, diz que não tem troco pra vinte, e  tudo isso com um olhar sádico. Não diz que sente muito por não ter troco , eu gostaria que ela dissesse ,como no cinema americano: “I`m sorry”, mas ela não diz. No Rio de Janeiro nunca dizem isso, as garçonetes adoram não sentir absolutamente nada...